Desatenção ou novos estilos de cognição?

Zaia Brandão – SOCED/PUC-Rio

 
Às diferentes interpretações do real, diferentes posicionamentos éticos, morais, afetivos, variados modos de classificar o meio em resultado das aprendizagens e experiências quotidianas, que diferem com as latitudes, com a história e as tradições, chamaremos estilos cognitivos, utensilagem mental com que a criança se vai munir no entendimento escolar quando aí chega (Ricardo Vieira, 1998,p.87).

        A entrada no campo da equipe do SOCED, no início da pesquisa sobre as escolas de prestígio do município do Rio de Janeiro, se deu por duas vias: observações sistemáticas em sala de aula e duas entrevistas exploratórias com mães de um dos colégios investigados.

        As observações feitas por uma equipe de quatro doutorandos, uma mestranda e a coordenadora da investigação, durante cerca de um mês e meio, foram desenvolvidas sem o recurso a uma grade de observação. Isto porque, neste momento exploratório o objetivo das observações era destacar - sem definições a priori, e na situação de sala de aula - os aspectos que aos olhos dos observadores ajudariam a desenhar melhor as estratégias de pesquisa mais pertinentes para investigar um problema pouco explorado entre nós: as práticas pedagógicas desenvolvidas em estabelecimentos escolares de prestígio.

        Nesta ocasião, além de observações nas salas de aula de três turmas de 8a série, entrevistamos longamente o diretor de uma das escolas e, visitamos detalhadamente as instalações da escola tendo o diretor como nosso guia. Esta situação foi especialmente interessante para perceber a auto-imagem institucional enfatizada pelo diretor. Ainda na perspectiva exploratória elaboramos e aplicamos três questionários (alunos, pais e professores). O material empírico obtido serviu como pesquisa piloto para a reelaboração dos instrumentos do survey da pesquisa em duas escolas de prestígio da zona sul do município do Rio de Janeiro: uma confessional e outra bílingue. Além disso entrevistamos duas mães de alunos1, cujo material empírico nos possibilitou esboçar tipos-ideais de acompanhamento familiar dos processos de escolarização dos filhos.

Sobre as famílias

 
Os filhos dos quadros médios ocupam uma posição totalmente específica no interior da escola (primária). Adotando, de uma maneira geral e qualquer que seja o seu resultado escolar, o perfil do bom aluno, seu comportamento mostra um certo “exagero”. Este traduz simultaneamente a importância do investimento escolar para essas categorias - pois o tempo escolar organiza o tempo de infância dos quadros médios – e a complementaridade e o reconhecimento recíproco e simétrico das duas instâncias de socialização: a família e a escola.

Longe de aparecerem como privilegiados, no nível da escola (primária), os filhos de quadros superiores/profissionais liberais parecem manter um relacionamento ao mesmo tempo fácil e difícil e, em todo caso, contraditório, com a escola (primária). O período escola primária é colocado sob o signo da evidência, pois nada está diretamente em jogo: sua trajetória escolar (dá-se) na segurança de uma escolarização efetuada no “Secundário-Superior”. Essa banalização do cotidiano escolar, que se traduz por uma mistura de indiferença e segurança, provoca um certo mal estar entre os professores. Se a escola primária organiza o tempo da infância entre os quadros médios, aqui fará apenas uma das facetas de um período consagrado, antes de mais nada, ao desenvolvimento da criança. (Sirota:1994. pp 153/154)

        Um tempo escolar organizando e, de certa forma, “roubando” o tempo da infância, e um tempo da infância que contém o tempo escolar, sem que este roube-lhe demasiadamente a infância. Será que esta hipótese se sustenta quando mergulhamos na experiência de escolar dos jovens que freqüentam algumas das escolas que formam as elites cariocas?  

  • A ansiedade dos quadros médios – face a escolarização dos filhos, recorrentemente flagrada pelas pesquisas e, ironicamente caracterizada de “boa vontade cultural” por Bourdieu (1979) - como se manifestaria nestas escolas?
  • A organização da cultura escolar nestas instituições minimizaria o hiato entre os interesses da infância e as necessidades da escolarização?

        Os dois segmentos (quadro médios e superiores) compõem o público das escolas pesquisadas. E é com esses tipos-ideais de alunos e famílias que essas escolas produzem a qualidade de ensino que balizam o prestígio dessas instituições. Os depoimentos colhidos em duas entrevistas exploratórias com mães de um dos colégios (o confessional) expressaram muito bem esses tipo-ideais de famílias. Como na pesquisa de Sirota, ambas as mães entrevistadas, embora formadas em nível superior, não trabalham fora de casa. O resultado, segundo Sirota, é uma translação dessas capacidades adquiridas para a profissionalização do papel de mãe. Elas dão suporte à vida escolar dos filhos e viabilizam – através do suporte logístico ao transporte, à organização dos horários, à avaliação dos custos, definição de prioridades etc. - uma série de atividades paralelas com o objetivo, explícito ou não, de ir além das exigências do cotidiano escolar. Criam assim um ambiente de socialização mais denso, pela multiplicação de atividades extra-escolares e pelo desenvolvimento de estratégias de diferenciação cultural que, embora independentes das demandas escolares, repercutem sobre as condições de escolarização dos filhos.

        Entretanto sob essa pauta comum na direção de investimentos educacionais, faz uma enorme diferença a estrutura e volume de capitais (econômico, cultural, social etc.) com que as duas mães supervisionam e delineiam as condições de educação dos filhos.

        A mãe situada nos estratos médios estrutura seu cotidiano à semelhança de um satélite em torno da vida dos três filhos. Mesmo com as duas filhas mais velhas já trabalhando (uma formada e outra ainda na universidade) ainda age como “motorista” das filhas e monitora passo a passo a escolarização do filho de 17 anos2. Ela sabe as notas e médias do filho (um dos primeiros de sua classe, segundo e seu depoimento) os dias de prova, conhece os professores e comunica-se com freqüência com os coordenadores do colégio. Controla até mesmo o CR (coeficiente de rendimento) da filha universitária. A família experimenta uma situação de mobilidade descendente, que levou a filha mais nova, ainda na universidade, a procurar um emprego. Fala dos últimos três anos como extremamente difíceis do ponto de vista econômico. A “boa vontade cultural” em relação às demandas escolares é evidente e tem garantido a trajetória escolar dos filhos em colégio de excelência.

        Já a mãe dos estratos superiores demonstra um acompanhamento muito menos ansioso da escolarização dos dois filhos. Os jovens parecem muito mais independentes na definição de suas atividades escolares e extra-escolares. Acompanha, mas não monitora, o cotidiano dos filhos. Diferentemente do que nos passou a mãe dos quadros médios, nesta família mãe e pai partilham o acompanhamento e a ajuda, quando solicitados pelos filhos, no desenvolvimento das atividades escolares.

 
O conhecimento vivido, tanto dos mecanismos sociais quanto do funcionamento do sistema escolar, que caracteriza os quadros superiores/profissionais liberais, lhes permite situar precisamente os momentos importantes, até mesmo determinantes, quanto à conservação de sua posição social. (Sirota, op. cit. p. 147)

        A escolarização é encarada como um percurso natural, que pode mesmo ser interrompido com um intercâmbio que atrasou em um semestre, a finalização do ensino médio pelo filho. A relação com a escola é sempre crítica, evidenciada por um episódio de troca de escola dos filhos3. Os filhos dão conta das tarefas escolares, aparentemente sem necessidade de muita supervisão. A família já morou no exterior (Suécia) e o pai viaja freqüentemente em conseqüência de sua posição como engenheiro de uma grande firma multinacional.

Sobre as aulas: uma questão a aprofundar

        Nas observações exploratórias que fizemos em uma das escolas, a equipe composta de seis pesquisadores, consensualmente surpreendeu-se com a dificuldade que os professores demonstravam em conseguir um mínimo de silêncio para começar as atividades em sala de aula. Os alunos entravam conversando, gesticulando, em pequenos grupos ou sozinhos e, mesmo depois de várias tentativas dos professores de conseguir um mínimo de silêncio e atenção do grupo para começar a aula, as conversas tomavam conta do ambiente por cerca de dez minutos, e ainda que menos intensas, continuavam durante as aulas. Em respostas aos questionários, professores e alunos assinalam o mesmo “problema”. Em conversas informais com professores e, com a diretora de outra escola, o tema da “desatenção” em sala de aula e da agitação dos alunos dificultando o andamento das aulas é recorrente. O sentimento que eles passam e, que nós mesmos, os pesquisadores experimentamos, é de uma enorme dificuldade desses jovens em prestar atenção pelo tempo necessário para acompanhar um segmento da explicação dos professores. Da parte dos professores, espantava-nos como conseguiam continuar as aulas em meio à “zona” que rotineiramente entremeava as práticas didáticas, fossem elas aulas expositivas, exercícios, trabalhos em grupos ou leituras de textos propostos para o tema da aula.

        Surpreendeu-nos particularmente encontrar, em um colégio que tem fama de disciplinador, rigoroso - e que se destaca, de uma maneira geral, por ótimos desempenhos dos alunos em situações de concursos e provas – essa imagem dos alunos na sala de aula. Por outro lado, pudemos observar que as aulas, de uma maneira geral, eram tecnicamente muito bem desenvolvidas: os professores começavam normalmente relacionando o tema do dia a questões tratadas anteriormente, introduziam as noções novas, exemplificavam de várias maneiras, faziam exercícios de fixação ou de ampliação, solicitando a participação individual ou em grupo dos alunos antes de concluir a aula. Por várias vezes sentimo-nos revivendo a condição de alunos, e em não poucas ocasiões perguntávamos porque tanta dispersão em aulas normalmente tão bem estruturadas e, sobretudo, como os professores aturavam tamanha agitação...

        As observações da equipe contrastavam, portanto, fortemente com a representação de disciplinas que se construiu em torno desta e outras escolas procuradas pelos mais diferentes segmentos das elites. Entretanto, refletindo sobre o tempo de observação em sala de aula, lembrávamos de ter observado, por mais de uma vez, respostas surpreendentemente ajustadas ao contexto das aulas, das quais aparentemente esses alunos estavam “desligados”. O que explicaria esse aparente paradoxo?

        Certamente faltava-nos algumas chaves para a compreensão dessa conexão/desconexão dos alunos observadas nas salas de aula. Pouco a pouco fomos formulando uma hipótese sobre as prováveis modificações dos padrões de cognição entre os jovens (quando reportados aos padrões experimentados pelos professores e gerações anteriores) que responderiam algumas de nossas interrogações. A literatura pertinente já vem apontando há muito tempo o impacto, sobre a vida e lazeres dos jovens, das novas tecnologias e da mídia. O “zapping” mudando constantemente as imagens e os sons, provavelmente desenvolveu subjetividades inquietas, pouco centradas mas, provavelmente, bem mais capazes que as gerações anteriores, de captar instantaneamente configurações sequer pressentidas por aqueles que tinham uma inteligência marcadamente “focal”. Esta permanente circulação imagética e sonora provavelmente estaria construindo de uma nova lógica, um habitus, de codificação/decodificação de discursos: fragmentários, plásticos, versáteis... O estar “plugado” em várias atividades simultaneamente (TV, internet, telefone e, ao mesmo tempo comendo e procurando um disco...) transitando permanente e concomitantemente em diversos “canais” estaria formatando um novo estilo de cognição. Os adultos (professores, pais, pesquisadores) ao avaliar a atenção dos jovens com base em suas experiências quando jovens e estudantes, não estariam encontrando os “sinais” de atenção e interesse que aprenderam a reconhecer como condições de aprendizagem.

        Essas hipóteses encontraram em uma pesquisa, sobre a escrita dos jovens na internet, desenvolvida por Maria Teresa Freitas (2000) algumas indícios de pertinência empírica. A hipótese da pesquisadora é de que a escrita na internet estaria afetando a consciência e a forma de cognição. O habitus do leitor teria sido modificado pela transformação dos artefatos de leitura e escrita na internet. Diz-nos ela:

 
Não é mais o leitor que se desloca fisicamente nas operações rotavolumes entre estantes de livrarias ou bibliotecas, mas é um texto móvel e caleidoscópio, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à vontade diante do leitor, misturando as funções de leitura e escrita, elevando-se a potência do coletivo a identificação cruzada do leitor e autor. A leitura na internet coloca nos mesmos planos a exterioridade da oralidade e a interioridade da escrita (Freitas, 2000, p.178).

        Segundo a mesma autora a tecnologia digital ao exigir uma série de transformações no suporte e nas formas tradicionais de operar a leitura e a escrita sugere um novo modelo mental interativo, explorável, móvel, modificável, articulado sobre mil reservas de dados. (idem, idem) Diferentemente do texto didático (oral e escrito) que implica em reiterações e repetições permanentes, esse novo estilo de cognição desenvolve-se na mobilidade, no fluxo permanente e aparentemente desordenado de deslocamentos de atenção, compondo, entretanto significados que, a maneira de um mosaico, acabam por compor imagens e significados coerentes. Talvez seja uma nova lógica nesta direção que explique o aparente paradoxo das observações descritas acima. Entretanto, esta hipótese vai requerer uma retomada teórico-empírica com base no aprofundamento da revisão bibliográfica sobre estilos de cognição na contemporaneidade.


1 Essas entrevistas foram desenvolvidas com pais que se dispuseram a ser entrevistados, em resposta a uma solicitação geral encaminhada com os questionários às famílias dos alunos. Cabe ressaltar que o pedido era encaminhado aos pais (pai e mãe), mas, com pouquíssimas exceções foram às mães que se dispuseram a ser entrevistadas.

2 Na entrevista relatou minuciosamente uma discussão com a mãe de um colega do filho que, segundo ela sempre foi um parasita dos trabalhos de seu filho O interessante é que no relato do trabalho de grupo que foi o “pivô’ da disputa, o conjunto das situações falavam a favor do colega ”parasita”.

3 A mudança foi motivada ao flagrar o equívoco no ensino de um conceito matemático pela professora da quarta série da filha (em uma das escolas de alto prestígio da zona sul do Rio de Janeiro).






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SIROTA, Régine. A escola primária no cotidiano. Porto Alegre: Artmed, 1994.



Freitas. Maria Tereza (2000)